A insuportável poeira dos corpos

Diz que no momento certo, quando somos chamados a agir, agimos. Diz que somos incompletos até esse momento, que nos ergue acima do corpo, que dá sentido à vida e garante ter valido a pena a asfixia da nascença. Por debaixo da poeira de dias infelizes, lições gritadas e inseguranças podres, há diamantes a brilhar na alma. Nos ecrãs e nos livros, os heróis que nos engasgam são gente improvável, subterrada em raivas, que um dia vence o peso da terra e desabrocha.

Confrontados com um olhar dorido ou uma mão ensanguentada, agimos, não é possível fazermos outra coisa, penso. A empatia é um ferramenta de sobrevivência, uma bússola para navegar a vida, sem a qual não sabemos do Norte, não sabemos do porto, não encontramos onde ancorar medo, felicidade e amor. Dou substância ao pensamento, e recordo momentos de empatia massiva. Estava no Sri Lanka, em 2004, depois doTsunami, e vi-a chegar, às catadupas, dentro de aviões, camiões, autocarros. Tanta, que era demais. Tanta, que não chegava onde devia chegar. O mundo comovido. E lá, no seio de uma guerra em pausa, as etnias a darem as mãos. 

Vejo-a agora aqui, à minha porta, nesta Malásia que sabe ser mal educada e racista, que agarra nas criadas pelos cabelos e as trata como escravas, que aceita os braços de quem não tem documentos para trabalhar nos edifícios de cinquenta andares, de onde caem e nunca mais se mexem, abandonados nas entradas dos hospitais, sem nome nem tostões. Mas quando a pandemia rouba meios de sobrevivência a famílias precárias, e um país sem segurança social as deixa a comer lágrimas e medos, violência e loucura, basta colocar uma bandeira branca na entrada de casa, e a vizinhança desdobra-se. Comida, roupa, sabão, fraldas, à porta de casa, haja ou não haja documentos, fale-se ou não bahasa, reze-se ou não ao mesmo deus. Os diamantes que luzem por debaixo da poeira atravessam tudo, ofuscam mais que o sol. É impossível não verter lágrimas ao espreitar tanto brilho. 

Porque quando é preciso agir, agimos.

Penso que é assim, não tenho dúvidas. E depois sou lembrada que não é. Pelas frestas do pensamento, vem o Sri Lanka abraçar um genocídio e a empatia rastejar, tísica no esforço. Quanto mais vivo, mais as certezas me fogem, mesmo as que abracei com mais força. Tempos houve em que não me cabiam nos braços, as certezas, mas agora tenho medo que só me sobrem as que me assustam, as assombrações que ocupam o vazio cínico de quem vestiu crença e a despiu.

Porque quando é preciso agir, às vezes agimos ao contrário, como quem, com agulhas na mão, desfaz malhas em vez de tricotar. 

Quando a certeza ainda vai a meio da queda, acho que é a ignorância apenas, que é só porque se está ao longe e não se vê ao perto, porque se se vir, o diamante rompe a brilhar. Mas não é. Há escuridão espessa na vida e eu não a entendo. Tento. Sento-me nessa praia da Grécia, no momento em que a patrulha encontra a familia escondida. Vejo-os, pai, mãe, filhos, esfarrapados a pedinchar sobrevivência, infância e futuro — outro, esse, algum, que no país da guerra perpétua só há passado aos escombros. E vejo-os a eles, e não são monstros, são gente, e olho para dentro, para descortinar como não vêem a humanidade, mas fronteiras, culturas, línguas. Poeira e mais poeira, espessa como uma samarra a cobrir a cegueira do corpo. E entro nele e morre a poesia, porque não há diamantes nas paredes, mas tão só fígado e intestinos, matéria que cheira mal e apodrece depressa. A mesma que temos todos. A mesma que faz heróis e vilões. Gente. Mas não monstros.

Saio da matéria viscosa do corpo e vejo-os ir além das ordens e por detalhes nos gestos. Vejo-os enxotar os corpos e as esperanças que ainda não secaram na areia, aos pontapés e aos gritos. Porque os entregam assim, sem mãos trémulas, sem joelhos fracos, sem estômago apertado, ao mar, não consigo entender por muito que tente. Porque os lançam a esse cemitério de gritos submersos, de vidas afundadas em barquinhos à vela. Porque escolheram os pés em vez das mãos, os gritos em vez dos abraços, como outros escolhem. Tento dizer-lhes cuidado, que a pupila assustada de uma criança não esquece, que o tecido morre e se transforma em vidro que estilhaça a vida inteira. Tento falar, mas não estou lá. Só finjo que estou. Tento que me digam onde acham que começa e termina um ser humano, se é na língua ou na pele, se é na vagina ou no pénis, se é na garganta ou na roupa. Gritos surdos em ouvidos moucos.

Diz que quando somos chamados a agir, agimos, mas creio agora que não é verdade, que é uma ilusão apenas, um dito filtrado de exemplos, estripado de história. A realidade contada às crianças que somos, sedentas de um final feliz antes da hora de adormecer.

@Rita Cruz. 2021

Partilhar

Leave a Comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *