Defeito de visão

À minha frente está uma mulher invisível. Esta, não saiu da minha cabeça, já que, tanto quanto sei, ainda só invento gente para a ficção (caso se tenham apercebido de que assim não é, avisem-me por favor com tacto e delicadeza). Sei, pois, dentro do meu saber, que tenho uma mulher invisível à minha frente, na qual reparo. Não se chama Alice, porque o nome não assenta no desenho do rosto e nos olhos rasgados, de certo não é nome que se use na terra dela. Também não é menina e não ficou pelo caminho de um abuso, como a Alice da minha cabeça. Está inteirinha, sem pé inchado, sem ferver de febre, sem o mesmo corpo que não cresce. E, no entanto, falta-lhe qualquer coisa que, neste restaurante onde está sentada, faça dela gente visível. Tem o cabelo apanhado num rabo de cavalo e agora que o digo não sei porque o menciono, se o que mais vejo não é o penteado capilar, mas os olhos escuros que agarram o mundo para lá destas paredes com mãos de cansaço. Está na mesa à minha frente. O elástico no cabelo é preto e mais uma vez não sei porque o digo, a não ser talvez para insistir na visibilidade esparramada em todos os pormenores. 

“Alice viajando por aí.” Autoria da minha querida @sabrina.assahi

Por muito que eu a veja, contudo, o casal que se senta com ela não a vê. Suspeito que até a pequena criança de pouco mais de um ano que ela procura acalmar e fazer beber água e comer da tigela de arroz, não a vê… Olhem que é obra, não se ser visto pela criança que se trouxe em braços do carrinho para a cadeira! Pergunto-me se aquele pequeno ser que esbraceja e exige com voz fina não lhe terá sentido o corpo.

Porque é invisível, quando o empregado traz menus para a mesa, não traz um para ela. E depois, quando alguns minutos depois a comida chega, também só vêem três tigelas: uma para o pai da criança, outra para a mãe da criança, e outra para a dita criança que ela ainda não conseguiu acalmar.

Como estou cheia de fome, e me atiro à tigela de Mazesoba mal a colocam à minha frente, identifico o olhar que ela deita às que chegam à mesa dela. Não fosse ela ser invisível e a família com quem ela se senta também o teria visto, mas assim é uma pena: fica sem comer. Curiosamente, mesmo invisível, ela dá de comer ao menino, colher a colher. Maravilho-me, mais uma vez. Pergunto-me se por acaso aquele menino só vê colheres de arroz suspensas no ar. Um mistério…

Já comi metade da tigela e a minha fome acalmou, pelo que posso dedicar-me à resolução da intriga. Atento na criança e na mãe da criança que, entretanto, se vira e, num inglês perfeito de quem frequentou excelente escola, pede um chá verde ao empregado. A senhora, além de educada, parece normal. Braços, cabeça, cabelos, nariz, boca. Os movimentos, a fala, a constituição do corpo. Um ser humano, não há que enganar. Os olhos também não parecem ter defeito. De facto, cruza olhar comigo — ou seja, sou apanhada a olhar para ela — e vê-me perfeitamente, de tal forma que até sorri, o que a torna, no meu léxico, não só ser humano educado, mas também simpático. Não pela primeira vez, acabo a perguntar-me se o defeito não estará no meu olhar. Se afinal não é ela que vê de menos, mas eu que vejo demais.

Trabalho sobre fotografia original de Elizaveta Dushechkina

Tenho de parar e pensar nisso, porque já várias pessoas me acusaram desse defeito de ver coisas a mais. A vida, dizem-me em reprimendas e lições que têm outras palavras que não estas, é para ser vivida com uma certa dose de cegueira selectiva. É mais fácil quando se nasce já a saber as gramas certas — como o menino que está à minha frente e que nunca há-de precisar de pesar para a dosear. Mas pode aprender-se sempre, não há que desistir. Não é patologia sem solução, dizem-me. É mais fácil de regular do que a miopia e não precisa de óculos, só de uns pequenos ajustes mentais. Ensinam-me exercícios, mas eles têm às vezes resultados inversos aos esperados, porque quando peço que mos expliquem em detalhe, em vez dos músculos dos meus olhos enfraquecerem, são os de quem tenta ajudar-me a cegar que ficam mais robustos, que de repente vêem coisas que não deviam ver. É um desastre inconsequente, atenção, não fujam de mim ou passem a evitar-me, porque a verdade é que rapidamente regressam ao seu estado normal. Daquilo que tenho observado concluo, com algum conhecimento de causa, que a cegueira selectiva é mais atractiva e irresistível do que a descrição livresca do canto de uma sereia.

A não ser para quem é incorrigível, como eu. Para mim, depois de tanta tentativa falhada e pese a boa vontade de tanta alma caridosa, parece não parece haver solução.

E enquanto penso nisto, a mulher invisível apanha-me debruçada sobre ela. Os olhos que agarravam o cansaço quando entraram e que depois agarraram a fome quando a comida chegou, agora agarram-se-me ao braço e levam-me a lugares vivos, lugares que não são daqui, nem deste restaurante nem deste país, lugares onde ela não é apenas a invisível mão que levanta a colher. E, de repente, assim, nas mãos dos olhos dela, vem-me à memória Moçambique e o que lá ouvi dizer um dia, de alguém que partilhava o mesmo defeito ocular que me aflige: “quando perderes a capacidade de indignação, é altura de te ires embora”. 

Vim-me embora de Moçambique muito antes de a perder e desconfio que mais cedo hei-de deixar este planeta, do que a hei-de perder. Um desastre para mim, porque reconheço que há uma qualidade de olhar que permite a vivência neste mundo em perfeita harmonia e contentamento e é maravilhoso e pacífico quando se nasce já com ela, ou se consegue aprendê-la. Creio, aliás, que esta é a grande divisão do mundo. Não é cor da pele, religião, língua, cultura, esquerda ou direita. É esta capacidade, ou não, de abraçar uma cegueira selectiva e caminhar alegremente num caminho de entulho teimando em ver apenas as coloridas flores de plástico que o ladeiam.

Enfim, acabo o Mazesoba e lá saio do restaurante com a indignação debaixo do braço, a avinagrar o dia sem grande consequência para o estado das coisas, a não ser tropeçar logo à saída e esfolar esta meia dúzia de pensamentos que me ficam a doer tarde adentro.

@Rita Cruz. 2023

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