Na casa de convalescença, está hoje uma menina que pariu um bebé.

Corpo estranho

Na casa de convalescença, está hoje uma menina que pariu um bebé. Não lhe deram alternativa, e ela fê-lo. Mas ela não se diz mãe, nem deu à luz um filho. Ela pariu um ser, feito do sémen indesejado do parente que a violou.

Tem doze anos, esta menina. E quando a vejo, o bebé tem seis meses, mas não parece. Não segura a cabeça e é miudinho como se só tivesse sido parido há pouco. Centímetros poucos de vida indesejada. Não a deixaram ver-se livre dele, daquele apêndice. Mas ela não é mãe. Ela é filha e menina, e olha para o mundo com o olhar egocêntrico de quem o é. Ela quer estar em qualquer lado menos ali, naquela casa de convalescença no fim do mundo, mas tem de estar por causa dele. Desde que o pariu, tudo é ele e por causa dele e à volta dele.

O bebé que tem seis meses e não parece, tem gesso numa perna. Perna fininha de fome. Ela não lhe dá de comer, dizem. Mas a menina sorri, nervosa, e diz que dá. Que gosta daquele apêndice. E como? O gesso, a perna partida? Diz que dormia no chão, o apêndice, quando um parente, o que a violou ou outro, o pisou sem querer. Diz ela. Por isso veio para ali, confirma a cuidadora. Porque tem a perna partida.

Pego no apêndice, que nas minhas mãos é um bebé que sorri quando tapo e destapo a cara, e faço caretas. O gesso é tão grande e tão pesado, naquele corpo de nada. E enquanto ele sorri e eu faço tilintar as chaves do carro para ele alcançar, reparo que o bracinho esquerdo não mexe. Está parado, ao lado dele, como se fosse trapo. E quando lhe toco, a carinha deforma-se e do sorriso nasce um choro.

E como? Desde quando, o bracinho que não mexe? Ela não reparou. Não tinha dado por isso ainda. Talvez essa manhã? Encolhe os ombros. Não sabe.

Está um médico comigo. Perguntamos à menina se pegou nele pelo braço, se o levantou assim, como se levanta um boneco de trapo. Ela diz que não. É tão bonita, a menina, é difícil não reparar como é bonita. Pestanas grossas e olhos escuros, brilhantes de súplica, onde não consigo conceber que se esconda maldade. Ela diz que não.

Mas pegou.

O apêndice chora durante a noite. Exige sempre, exige mais, e ela não é mãe. Pegou nele sim, agarrou-lhe o braço à bruta, irritada talvez, e rodou-o, e aquele corpo frágil partiu outra vez. Ela não diz. Dizem-no as outras, no silêncio saturado com que nos olham e calam. E confirmam mais tarde, quando sabemos por certo que o braço está partido como a perna.

A menina ainda não percebeu que não foi só violada e pariu um bebé. Mas que é mãe e tem um filho. Arrepende-se, agora. Só que é tarde, e vai pagar caro o não ter percebido logo, desde o exacto momento em que o tio meteu o membro por onde mais tarde saiu o bebé. Devia ter lutado mais, com forças que não tinha, gritado alto que não, mesmo que ele lhe tapasse a boca e prendesse a garganta. Devia ter feito o impossível, porque o corpo ainda lhe pertencia. Depois é que já não. Mal a semente pegou, o corpo passou a ser do mundo dos homens.

Pela porta onde nós saímos, há-de entrar mais tarde a polícia. O tio que a violou, já saiu de cena e não volta a entrar na peça. Num país que não reconhece o estatuto de refugiado, o silêncio é sobrevivência. Não há gritos nem acusações. Os crimes calam-se e encerram-se a sete chaves. São tantos, esses crimes, tantas as vítimas e tantos os vitimários. E é assim que o papel do tio se resume a um acto, aquele em que se livrou do sémen que lhe enchia as calças. Acto fundamental, porque foi desse líquido peganhento que se formou aquele apêndice que ela só quer que morra desde que nasceu. Mas o apêndice resiste a tudo. A polícia vem por ela, porque ele resiste e mostra tudo. As fracturas, a falta de alimento. É pequeno como um verme e, provavelmente, com tanto maltrato, haverá de ter o cérebro de um, mas sobrevive. Ela, é que já deixou de existir. E eu nunca mais hei-de saber dela.

@Rita Cruz. 2022

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