Fim de uma obra

Está impressa, pronta para revisão, a obra que me persegue há dois anos. Olho para as páginas e penso Curioso como é diferente ler no papel em vez de num ecrã. Sei que vão ser muitos os erros, os aquéns e os aléns, que só se lhe vou notar agora, que está assim e não assado. Só no papel, sinto que se transforma numa obra inteira. No ecrã é sempre qualquer coisa que ainda não é, uma permanente ecografia com mãos, pés, nariz, vagamente familiar, mas vagamente alienígena também. Impressa, está parida e o que está é o que é. Vê-se a pele, nota-se o cheiro a leite, contam-se os dedos dos pés, os das mãos. As imperfeições já não se escondem num corpo enrolado. 

Descanso, agora que está impressa. Posso finalmente começar a arrancá-la de mim. Pouco a pouco. Posso sentar-me ao sol, numa tarde de Domingo, e ler outras palavras que não as minhas. Posso libertar da filigrana do meu cérebro as vivências que me atrapalhavam a vivência de outras. Deitar fora dilemas que não são meus, erros que não cometi, azares que não tive, épocas que não vivi. Deixam-me agora, aos poucos. Já lhes sinto a despedida, misturada na maresia do ar. Como se intuíssem que, agora que estão em marcas de tinta, vivem e já não precisam de mim. Quase, quase, que posso ficar em paz, a viver outras coisas — e tenho muita vontade de outras coisas — até que a obra toda me largue e deixe de ser minha. E então, há-de voltar a inquietação, quando me vierem perguntar coisas que não sei responder, como se ela, afinal, nunca tivesse deixado de ser minha. 

Pergunto-me se é assim, sempre e para todos. Uma febre de intensidade absurda, que consome mais do que deve, mas que é impossível largar. E só se nota no fim, quando se larga. Com um amor abusivo cujas marcas só se notam depois do corpo deixar de arder. 

@Rita Cruz. 2021

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