Salvador

Salvador sempre foi pequenino. Quando nasceu, era pouco maior que as ratazanas cujas sombras espreitam nas traseiras das barracas dos hawkers. Tinha a pele baça, olhos fechados que não abriam, pernas e braços que não mexiam. Não se lhe ouviu o grito com que os recém nascidos reclamam da exigência pulmonar. Salvador não o fez, ficou azulado em vez de rosado, murchou em vez de expandir. Acabou embrulhado em tubos e agulhas, a fazerem a vez de abraços. 

A mãe, depois do cocktail de aborto, largou o hospital e voltou ao trabalho, a ganhar Ringitt na periferia da legalidade. Ele ficou entregue ao abandono. Mas por onde a mãe saiu entrou ela. Falava inglês pintado de alemão, os Vs metidos nos Ws, mas a dizer um ayoh! cantado como se ali tivesse nascido, naquele terra que nem era dele nem era dela. 

Ela foi o abraço e a pele, a voz ao ouvido, as mãos nas dele. Onde ela estava, havia sol, e Salvador encostou-se a ela com medo de frio. Um a um, foram-se os tubos. Os que ajudavam a respirar, os que ajudavam evacuar, os que ajudavam a comer. As paredes passaram a ser as da casa dela, repletas de fotografias de casamentos, filhos e netos. Salvador entrou ao colo, como se fosse filho, gente com lugar no mundo.

Foram quatro anos, até que ela o levou para a casa onde ele ficaria, mas que não era dela e onde ela não estaria. Salvador sempre foi pequenino, mas o coração só então o soube. Gelou e definhou. Salvador nunca andou, nunca falou. E quando ela partiu, não quis ficar. Só tinha espaço para um abandono, só tinha fôlego para um recomeço. 

A vida de Salvador foi pequenina, como o corpo, mas não como a memória, ou o desejo de que nunca o tivessem forçado a ser pequenino.

© Rita Cruz. 2021

À memória do Sammy e da mulher extraordinária que o acolheu

Comprar o livro

Subscreva, para estar a par do que aqui se escreve

sobre a autora